quarta-feira, 13 de junho de 2012

UM TEXTO DE ELIANE BRUM



Ao conviver com os bem mais jovens,
com aqueles que se tornaram adultos há pouco
e com aqueles que estão tateando para virar gente
grande, percebo que estamos diante da geração mais preparada – e, ao mesmo tempo,
da mais despreparada. Preparada do ponto de
vista das habilidades, despreparada porque não sabe lidar com frustrações.
Preparada porque é capaz de usar as ferramentas da
tecnologia, despreparada porque despreza o esforço. Preparada porque conhece
o mundo em viagens protegidas, despreparada porque
desconhece a fragilidade da matéria da vida. E por tudo isso sofre, sofre muito,
porque foi ensinada a acreditar que nasceu com o
patrimônio da felicidade. E não foi ensinada a criar a partir da dor.

Há uma geração de classe média que estudou em bons colégios, é fluente em
outras línguas, viajou para o exterior e teve acesso à cultura
e à tecnologia. Uma geração que teve muito mais do que seus pais.
Ao mesmo tempo, cresceu com a ilusão de que a vida é fácil. Ou que
já nascem prontos – bastaria apenas que o mundo reconhecesse a sua genialidade.

Tenho me deparado com jovens que esperam ter no mercado de trabalho uma
continuação de suas casas – onde o chefe seria um pai ou
uma mãe complacente, que tudo concede. Foram ensinados a pensar que merecem,
seja lá o que for que queiram. E quando isso não
acontece – porque obviamente não acontece – sentem-se traídos,
revoltam-se com a “injustiça” e boa parte se emburra e desiste.

Como esses estreantes na vida adulta foram crianças e adolescentes que
ganharam tudo, sem ter de lutar por quase nada de relevante,
desconhecem que a vida é construção – e para conquistar um espaço no mundo
é preciso ralar muito. Com ética e honestidade – e não a
cotoveladas ou aos gritos. Como seus pais não conseguiram dizer, é o mundo
que anuncia a eles uma nova não lá muito animadora: viver
é para os insistentes.

Por que boa parte dessa nova geração é assim? Penso que este é um questionamento
importante para quem está educando uma criança
ou um adolescente hoje. Nossa época tem sido marcada pela ilusão de que a felicidade
é uma espécie de direito. E tenho testemunhado a
angústia de muitos pais para garantir que os filhos sejam “felizes”.
Pais que fazem malabarismos para dar tudo aos filhos e protegê-los de
todos os perrengues – sem esperar nenhuma responsabilização nem reciprocidade.

É como se os filhos nascessem e imediatamente os pais já se tornassem devedores.
Para estes, frustrar os filhos é sinônimo de fracasso
pessoal. Mas é possível uma vida sem frustrações? Não é importante que os filhos
compreendam como parte do processo educativo duas
premissas básicas do viver, a frustração e o esforço? Ou a falta e a busca,
duas faces de um mesmo movimento? Existe alguém que viva
sem se confrontar dia após dia com os limites tanto de sua condição
humana como de suas capacidades individuais?

Nossa classe média parece desprezar o esforço. Prefere a genialidade.
O valor está no dom, naquilo que já nasce pronto. Dizer que “fulano
é esforçado” é quase uma ofensa. Ter de dar duro para conquistar algo parece
já vir assinalado com o carimbo de perdedor. Bacana é o
cara que não estudou, passou a noite na balada e foi aprovado no vestibular de Medicina.
Este atesta a excelência dos genes de seus pais.
Esforçar-se é, no máximo, coisa para os filhos da classe C,
que ainda precisam assegurar seu lugar no país.

Da mesma forma que supostamente seria possível construir um lugar sem esforço,
existe a crença não menos fantasiosa de que é possível
viver sem sofrer. De que as dores inerentes a toda vida são uma anomalia e,
como percebo em muitos jovens, uma espécie de traição ao
futuro que deveria estar garantido. Pais e filhos têm pagado caro pela crença
de que a felicidade é um direito. E a frustração um fracasso.
Talvez aí esteja uma pista para compreender a geração do “eu mereço”.

Basta andar por esse mundo para testemunhar o rosto de espanto e de mágoa
de jovens ao descobrir que a vida não é como os pais
tinham lhes prometido. Expressão que logo muda para o emburramento.
E o pior é que sofrem terrivelmente. Porque possuem muitas
habilidades e ferramentas, mas não têm o menor preparo para lidar com a dor e as
decepções.
Nem imaginam que viver é também ter de
aceitar limitações – e que ninguém, por mais brilhante que seja, consegue tudo o que quer.

A questão, como poderia formular o filósofo Garrincha, é: “Estes pais e estes filhos
combinaram com a vida que seria fácil”? É no passar
dos dias que a conta não fecha e o projeto construído sobre fumaça desaparece
deixando nenhum chão. Ninguém descobre que viver é
complicado quando cresce ou deveria crescer – este momento é apenas quando
a condição humana, frágil e falha, começa a se explicitar
no confronto com os muros da realidade. Desde sempre sofremos.
E mais vamos sofrer se não temos espaço nem mesmo para falar da
tristeza e da confusão.

Me parece que é isso que tem acontecido em muitas famílias por aí: se a felicidade
é um imperativo, o item principal do pacote completo
que os pais supostamente teriam de garantir aos filhos para serem considerados
bem sucedidos, como falar de dor, de medo e da
sensação de se sentir desencaixado? Não há espaço para nada que seja da vida,
que pertença aos espasmos de crescer duvidando de seu
lugar no mundo, porque isso seria um reconhecimento da falência do projeto familiar
construído sobre a ilusão da felicidade e da
completude.

Quando o que não pode ser dito vira sintoma – já que ninguém está disposto a escutar,
porque escutar significaria rever escolhas e
reconhecer equívocos – o mais fácil é calar. E não por acaso se cala com medicamentos
e cada vez mais cedo o desconforto de crianças
que não se comportam segundo o manual. Assim, a família pode tocar o cotidiano
sem que ninguém precise olhar de verdade para
ninguém dentro de casa.

Se os filhos têm o direito de ser felizes simplesmente porque existem – e aos pais caberia
garantir esse direito – que tipo de relação pais e
filhos podem ter? Como seria possível estabelecer um vínculo genuíno se o sofrimento,
o medo e as dúvidas estão previamente fora dele?
Se a relação está construída sobre uma ilusão, só é possível fingir.

Aos filhos cabe fingir felicidade – e, como não conseguem, passam a exigir cada vez
mais de tudo, especialmente coisas materiais, já que
estas são as mais fáceis de alcançar – e aos pais cabe fingir ter a possibilidade de
garantir a felicidade, o que sabem intimamente que é
uma mentira porque a sentem na própria pele dia após dia. É pelos objetos de consumo
que a novela familiar tem se desenrolado, onde
os pais fazem de conta que dão o que ninguém pode dar, e os filhos simulam receber
o que só eles podem buscar. E por isso logo é
preciso criar uma nova demanda para manter o jogo funcionando.

O resultado disso é pais e filhos angustiados, que vão conviver uma vida inteira,
mas se desconhecem. E, portanto, estão perdendo uma
grande chance. Todos sofrem muito nesse teatro de desencontros anunciados.
E mais sofrem porque precisam fingir que existe uma vida
em que se pode tudo. E acreditar que se pode tudo é o atalho mais rápido para
alcançar não a frustração que move, mas aquela que
paralisa.

Quando converso com esses jovens no parapeito da vida adulta, com suas imensas
possibilidades e riscos tão grandiosos quanto, percebo
que precisam muito de realidade. Com tudo o que a realidade é.
Sim, assumir a narrativa da própria vida é para quem tem coragem. Não
é complicado porque você vai ter competidores com habilidades iguais ou
superiores a sua, mas porque se tornar aquilo que se é, buscar a
própria voz, é escolher um percurso pontilhado de desvios e sem nenhuma certeza de
chegada.
É viver com dúvidas e ter de responder
pelas próprias escolhas. Mas é nesse movimento que a gente vira gente grande.

Seria muito bacana que os pais de hoje entendessem que tão importante
quanto uma boa escola ou um curso de línguas ou um Ipad é
dizer de vez em quando: “Te vira, meu filho. Você sempre poderá contar comigo,
mas essa briga é tua”. Assim como sentar para jantar e
falar da vida como ela é: “Olha, meu dia foi difícil” ou “Estou com dúvidas,
estou com medo, estou confuso” ou “Não sei o que fazer, mas
estou tentando descobrir”. Porque fingir que está tudo bem e que tudo
pode significa dizer ao seu filho que você não confia nele nem o
respeita, já que o trata como um imbecil, incapaz de compreender a matéria da existência.
É tão ruim quanto ligar a TV em volume alto o
suficiente para que nada que ameace o frágil equilíbrio doméstico possa ser dito.

Agora, se os pais mentiram que a felicidade é um direito e seu filho merece
tudo simplesmente por existir, paciência. De nada vai adiantar
choramingar ou emburrar ao descobrir que vai ter de conquistar seu espaço no mundo
sem nenhuma garantia. O melhor a fazer é ter a
coragem de escolher. Seja a escolha de lutar pelo seu desejo – ou para descobri-lo –,
seja a de abrir mão dele. E não culpar ninguém
porque eventualmente não deu certo, porque com certeza vai dar errado muitas vezes.
Ou transferir para o outro a responsabilidade pela
sua desistência.

Crescer é compreender que o fato de a vida ser falta não a torna menor.
Sim, a vida é insuficiente. Mas é o que temos. E é melhor não
perder tempo se sentindo injustiçado porque um dia ela acaba.

ELIANE BRUM Jornalista, escritora e documentarista. Ganhou mais de 40 prêmios nacionais e
internacionais de reportagem. É autora de Coluna Prestes –
O Avesso da Lenda (Artes e Ofícios), A Vida Que Ninguém Vê
(Arquipélago Editorial, Prêmio Jabuti 2007) e O Olho da Rua (Globo).
E-mail:
elianebrum@uol.com.br
Twitter: @brumelianebrum

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